Subversão sistêmica: uso da ação popular por servidor na tentativa de invalidar decisão do Carf

A ação popular, conforme disposta no artigo 5º, LXXIII, da Constituição e nos artigos 1º e 2º da Lei nº 4.717/1965, constitui um direito fundamental que permite ao cidadão invalidar atos administrativos que sejam lesivos ao patrimônio material e imaterial do Estado. Esse instrumento legal está intimamente relacionado com a ideia de soberania popular, permitindo à sociedade exercer uma função fiscalizatória sobre a atuação do Estado, o que reforça a democracia participativa nos termos da Carta Política de 1988.

A ação popular, portanto, configura meio pelo qualquer cidadão atua diretamente na defesa do interesse público, tornando-se um importante canal para anular, judicialmente, eventual ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.

Inicialmente, o exercício da ação popular exigia a demonstração do binômio ilegalidade-lesividade, sendo usualmente necessário comprovar um dano financeiro ao erário para caracterizar o ato lesivo. No entanto, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Tema 836 (ARE nº 824.781/MT), ampliou o entendimento acerca do núcleo essencial da actio popularis, estabelecendo que sua finalidade não se limita à proteção econômica do patrimônio estatal.

No supracitado julgamento, o STF reconheceu que a ação pode ser utilizada para afastar ilegalidades que extrapolam o aspecto patrimonial, abrangendo também lesões de natureza moral, cultural e histórica ao patrimônio do Estado. A tese firmada indicou que o cabimento da ação popular não depende da comprovação de prejuízo material, dado que qualquer cidadão é parte legítima para propor a ação em defesa de um patrimônio amplo, que inclui valores imateriais.

Adaptação da ação popular aos interesses modernos

Essa interpretação inovadora reflete a necessidade de se adaptar a ação popular à complexidade dos interesses difusos e coletivos modernos, resguardando o interesse público para além de meras perdas financeiras. Contudo, o STF também reconhece que o direito de propor ação popular não pode ser instrumentalizado para defender interesses privados sob pretexto de proteção coletiva. Caso contrário, o uso desse direito restaria desvirtuado, contrariando o princípio de que a ação popular deve objetivar a tutela de interesses genuinamente coletivos, ainda que o autor se beneficie indiretamente da preservação desses interesses.

Da mesma forma, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem reforçado que a ação popular não é cabível para a tutela de interesses estritamente individuais. Cita-se como exemplo o REsp nº 1.870.473-RS e o REsp nº 801.080-RJ, em que a Corte reiterou que o exercício da ação deve visar unicamente à defesa de interesses de cunho público, sendo inadmissível a utilização dessa via judicial para questionamentos de ordem pessoal ou em oposição ao entendimento consolidado por órgãos administrativos superiores, a menos que haja uma clara demonstração de ilegalidade.

A Corte entende que permitir o uso da ação popular para fins particulares comprometeria o papel desse instituto, podendo torná-lo um mecanismo de contestação do exercício legítimo da atividade administrativa.

Dito isto, o REsp 1.608.161-RS, de relatoria da ministra Regina Helena Costa, (Primeira Turma, julgado em 6/8/2024, DJe 9/8/2024) abordou um caso bastante curioso: um auditor-fiscal da Receita Federal propôs ação popular com o objetivo de anular um acórdão do Carf que havia reconhecido a decadência de créditos tributários devidos por um contribuinte.

O objetivo declarado era a proteção ao erário, mas a decisão indicou que a real motivação parecia ser a contestação de uma decisão administrativa baseada em uma interpretação legal divergente daquela defendida pelo autor. O STJ observou que o uso reiterado da ação popular por servidores públicos para reverter entendimentos administrativos representa uma insubordinação ao que foi decidido por órgãos superiores, caracterizando uma tentativa de invalidar o Juízo administrativo de instâncias próprias, como o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.

Uso indevido de ação popular

Em consulta ao STJ, identificou-se outros recursos especiais e agravos que foram interpostos por meio de ação popular para contestar decisões administrativas de natureza fiscal e tributária, sinalizando um comportamento contrário ao respeito e lealdade que se espera de um servidor público em relação às deliberações das autoridades competentes.

Esse uso indevido da ação popular é considerado uma subversão da hierarquia administrativa e pode constituir, em tese, uma infração funcional, conforme os deveres de lealdade e respeito à estrutura institucional definidos no artigo 116, II e IV, da Lei nº 8.112/1990 [1]. Embora o direito fundamental à ação popular seja inquestionável, utilizá-lo para impugnar decisões legais de órgãos administrativos, sob a justificativa de divergência de interpretação, desvia o instituto de sua função originária, colocando em risco a própria hierarquia e harmonia da administração pública.

A jurisprudência, portanto, é clara ao destacar que o cabimento da ação popular exige que se demonstre uma ilegalidade objetiva no ato impugnado, não se admitindo meras discordâncias interpretativas como fundamento para invalidar atos administrativos, principalmente aqueles advindos de colegiados paritários que, por sua natureza, tendem a refletir múltiplas perspectivas interpretativas sobre normas de conteúdo polissêmico. A atuação judicial em casos assim deve estar restrita ao afastamento de atos marcados por manifesta desconformidade com a legalidade ou por abuso de poder, que violam o interesse público sob uma perspectiva coletiva, e não individual ou particular.

Em resumo, a ação popular configura-se como um importante instrumento democrático que permite ao cidadão fiscalizar e intervir na administração pública para proteger interesses coletivos. Sua utilização, no entanto, deve ser cautelosa, respeitando a finalidade de resguardar o bem público em sentido amplo, abarcando aspectos materiais e imateriais, e jamais servindo de meio para a defesa de interesses pessoais ou para o questionamento de decisões administrativas legítimas com base em meras divergências interpretativas.